Enquanto os servidores públicos foram “blindados” pela Suprema Corte, uma medida provisória do governo Bolsonaro permitiu que funcionários da iniciativa privada com redução de jornada tivessem o salário cortado em até 70%. Segundo o governo, cerca de 11,5 milhões de pessoas já tiveram o salário reduzido ou o contrato de trabalho suspenso.
A discussão no Supremo foi concluída hoje com a retomada do julgamento sobre a validade da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 2000. O julgamento da ação, que chegou ao Supremo naquele mesmo ano, levou 20 anos, sendo concluída em plena pandemia da covid-19. Para a maioria dos ministros do STF, a redução de salário de servidor público afronta a Constituição por violar o princípio da irredutibilidade dos vencimentos.
Em 2002, em uma avaliação preliminar, o Supremo derrubou o artigo da LRF que permitia reduzir jornada de trabalho e salário de servidores públicos caso o limite de gasto com pessoal de 60% da Receita Corrente Líquida (RCL) fosse atingido. Agora, com uma composição quase totalmente diferente, o tribunal analisou o mérito da questão, mantendo a suspensão do dispositivo.
Seia ministro do Supremo já haviam votado em agosto do ano passado contra a redução de salário de servidores públicos: Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luiz Fux e Marco Aurélio Mello.
O julgamento foi concluído com a manifestação do decano, Celso de Mello, que não participou da discussão em 2019 por estar de licença médica. “É preciso enfatizar que a garantia da irredutibilidade de vencimentos reflete importantíssima conquista jurídico-social (que cumpre não ignorar), outorgada pela vigente Constituição da República a todos os servidores públicos, em ordem a dispensar-lhes especial proteção de caráter financeiro contra eventuais ações unilaterais do Estado”, escreveu Celso de Mello em seu voto, acompanhando o entendimento da maioria.
Corporativismo. Internamente, o governo lamentou a decisão, pois avalia que são altas as chances de atraso nos salários de servidores públicos. O ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe já contavam com o veto do Supremo, razão pela qual tentaram um caminho alternativo ao propor ao Congresso o congelamento de salários até dezembro 2021 para os servidores da União, Estados e municípios no projeto de socorro emergencial aos entes da federação para enfrentamento da covid-19.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), disse ao Estadão que não faz sentido que se condene uma geração presente e futura a pagar o preço de contratos feitos no passado sem ter capacidade de pagar. “Respeito a posição do STF, mas entendo que isso deve ser uma discussão na PEC do Pacto Federativo para alteração constitucional”, afirmou Leite.
Para o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), a decisão do Supremo foi “egoísta” e “corporativista”. “Sempre que o Judiciário tem de decidir entre a sociedade e as corporações, como regra, o Judiciário decide a favor das corporações, afinal é a mais poderosa e beneficiada das corporações públicas, se torna imune a todas as crises econômicas da sociedade. Vive em um mundo fora da realidade. E evidentemente, nessa situação, quando a máquina pública, as corporações, os poderes não vivem a realidade da população, fica muito mais difícil de fazer o ajuste das contas”, criticou o prefeito.
Na opinião da especialista em RH do serviço público e autora de uma proposta de reforma administrativa, Ana Carla Abrão, da consultoria em gestão Oliver Wyman, a decisão é absurda e injusta justamente num momento em que os trabalhadores da iniciativa privada têm tido corte de salários durante a pandemia.
“Mostra o quanto a gente ainda vive numa situação em que o corporativismo avança sobre a realidade aprofundando a desigualdade que foi escancara na pandemia”, disse. Na sua avaliação, uma situação como essa mostra que os ajustes podem ser feito no setor privado, enquanto blinda o setor público contra qualquer possibilidade de ajuste, criando dois mercados de trabalho.
Nas contas do Tesouro Nacional, 12 Estados fecharam 2018 gastando mais que o permitido com a folha de pessoal. Com a redução da jornada e do salário, os Estados que ultrapassam o limite poderiam economizar até R$ 38,8 bilhões.
“A escolha foi feita pela própria Constituição, que estabeleceu todas as hipóteses de enxugamento da máquina sem fazer constar a redução de salário de servidores. O custo social de corte de salário de servidor é vivermos o perigo constante de greve de servidores, que é muito pior que as possibilidades razoáveis criadas pela Constituição Federal (que prevê a demissão)”, disse o ministro Luiz Fux no ano passado.
Radical. Em seu voto, o relator da ação, Alexandre de Moraes, observou que a Constituição prevê, em situações extremas, a própria demissão de servidores públicos estáveis, enquanto a LRF permite a adoção de medidas menos radicais, com a flexibilização temporária da jornada de trabalho e salário. Para Moraes, o caminho intermediário preserva a estabilidade do serviço público.
“A discussão não é reduzir salário e jornada ou seguir como está. É isso ou desemprego. A Constituição fez o 8 ou o 80. É perda da estabilidade com consequente perda do cargo público para sempre por questões orçamentárias, fiscais. O que a lei de responsabilidade fiscal fez foi permitir uma fórmula intermediária, aqui não é hipótese de perda da estabilidade. A Constituição previu o mais radical. A lei não poderia de forma absolutamente razoável estabelecer algo menos radical e temporário?”, disse Moraes.
Além de Alexandre de Moraes, se posicionaram a favor da redução de salário apenas os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Gilmar lembrou no julgamento que, em meio à crise, Estados como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais chegaram a parcelar salários de servidores públicos.
“Em momentos de crise, é possível que surja a necessidade de realização de ajustes na Administração Pública, de forma a evitar que medidas mais graves precisem ser tomadas, inclusive a fim de evitar a total impossibilidade de pagamento de remuneração dos servidores públicos ou a extinção de cargos”, disse Gilmar.
Repasses. Outro controverso ponto da LRF em discussão era a possibilidade de o Executivo limitar repasses de recursos a outros poderes em caso de frustração de receitas no Orçamento. Esse item havia rachado ao meio o plenário, com cinco votos a favor para que o Executivo adote a medida e outros cinco votos contra.
Com o voto decisivo de Celso de Mello, o Supremo decidiu, por 6 a 5, que o Executivo não pode limitar recursos a outros poderes em caso de frustração de receitas no Orçamento. Para a maioria, esse dispositivo violaria o princípio da separação dos poderes.
Hoje, quando a arrecadação fica abaixo do projetado no Orçamento, os demais poderes ficam imunes a tesouradas nas despesas e continuam recebendo o repasse mensal (duodécimo) normalmente, às custas do Executivo. Esse entendimento do STF também frustrou Estados, que viam no dispositivo – invalidado pelo STF – uma possibilidade de estancar parte do problema que drena recursos dos cofres estaduais
No ano passado, o Estadão revelou que, enquanto os Executivos estaduais sofriam com contas atrasadas e muitos sequer conseguiam colocar salários de servidores em dia, os poderes Legislativo, Judiciário, Ministério Público e Defensoria tinham uma sobra de R$ de 7,7 bilhões em recursos.
Para o ministro Luís Roberto Barroso, a Lei de Responsabilidade Fiscal dá a oportunidade de os poderes “cortarem na própria carne”, diante do aviso do Executivo de que a arrecadação ficou abaixo do projetado no Orçamento. “Se eles não fizeram, aí o Executivo, que é quem tem a chave do cofre, tem que fazê-lo”, defendeu o ministro. A posição de Barroso, no entanto, foi derrotada./AE