Acima do bem e do mal

5 Min. de Leitura

Não fosse pela profusão de gravatas e sapatos de salto alto, poder-se-ia dizer que a aglomeração de pessoas em frente à sede do Supremo Tribunal Federal (STF) na quinta-feira passada, dia da abertura do Ano Judiciário de 2018, era uma manifestação convocada por alguma central sindical. Mas os manifestantes que pediam aumento salarial e erguiam faixas e cartazes contra a aprovação da reforma da Previdência eram juízes e membros do Ministério Público, servidores que compõem a elite do funcionalismo público no Brasil.

A julgar pelos métodos e pela defesa aguerrida de seus interesses estritamente corporativos, a despeito da realidade do País a que servem, o ato convocado por entidades como a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), entre outras, em muito se assemelhou a uma manifestação sindical, ainda que a sindicalização daquelas categorias profissionais seja proibida por lei.

Travestidas de clubes recreativos ou centros de estudos e debates, tais associações têm se prestado muito mais a um papel semelhante ao de um sindicato do que aos propósitos que lhes deram origem. Não se pode tirar conclusão diversa da leitura dos recentes manifestos publicados por tais entidades, cujo tom é eminentemente político e classista.

Os representantes das associações do Poder Judiciário e do Ministério Público entregaram uma carta à ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, e à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pedindo a “valorização” das carreiras e o reajuste de seus vencimentos. O documento, que contou com 17 mil assinaturas em apoio, alega uma “defasagem acumulada do poder aquisitivo do Judiciário e do Ministério Público”, o que, para os signatários, representaria “um atentado à garantia da irredutibilidade”, além de configurar uma “injustiça”.

O documento não aprofunda os cálculos que atestariam a suposta defasagem salarial nem deixa claro em relação a quem os juízes, promotores e procuradores de Justiça estariam sendo “injustiçados”.

Na carta, as associações também defendem a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que autoriza o pagamento de adicional por tempo de serviço para os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público. A proposta, que aguarda votação no plenário do Senado, prevê o pagamento de uma gratificação de 5% do subsídio mensal a cada cinco anos de carreira, até o limite de 35%. Caso seja aprovada, a PEC irá permitir que os juízes, promotores e procuradores da República recebam acima do teto constitucional, hoje fixado em R$ 33,7 mil.

De tão descolados do enorme esforço de recuperação por que passa a Nação após o desastre da experiência lulopetista, os pedidos dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público parecem vir de servidores que pensam pairar acima do bem e do mal tão somente pela natureza elevada de suas atribuições, sobretudo neste momento em que alguns juízes, procuradores e até ministros de Cortes Superiores se arvoram em redentores da vida pública nacional. Tanto é assim que qualquer crítica ou questionamento que lhes sejam feitos são tratados como críticas ao combate à corrupção ou são associados a uma suposta conivência com os maus políticos. No entanto, é no Supremo que se arrastam, há quatro anos, os primeiros processos da Lava Jato em regime privilegiado.

A distância abissal entre os interesses corporativos e o interesse público não é de hoje. Tal é a autopropensão à superioridade de classe que parece contaminar alguns juízes que houve um tempo em que a magistratura paulista não se constrangeu em ver recolhido 1% de todas as custas judiciais aos cofres da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), um despautério – em boa hora extinto pela Assembleia estadual, que criara a extravagância – que transferia recursos públicos, pagos pelos litigantes, para custear o lazer dos magistrados.

Em seu discurso de abertura do Ano Judiciário, a ministra Cármen Lúcia disse ser “inadmissível desacatar a Justiça”. Ela está certa. Inadmissível também é aceitar os termos da carta das associações de classe e, assim agindo, desacatar os contribuintes.

(Estadão)

Compartilhar Notícia