Aceitar Anitta no país das excelências musicais, com pessoas ensinadas desde criança a dividir não só a “boa música” do “descartável” mas, pior, a qualificar o outro por aquilo que ele ouve, não é fácil. Um crítico que aceita Anitta é um profissional raso. Uma criança que canta Anitta é filha de pais irresponsáveis. Uma mulher que posta um vídeo no qual aparece em posição de flexão enquanto empina os glúteos e tenta rebolar, emulando o “el paso” de Envolver, é alguém a ter a amizade desfeita. Os ouvidos são tapados e as redes bloqueadas, mas o noticiário chega e lá está Anitta, como Roberto Carlos por foi décadas, onipresente, onipotente e em franco processo de expansão.
Então, talvez, seja preciso desconstruir a Anitta imaginária para se chegar a algum entendimento.
1. Anitta não é “produto de uma estratégia de mercado bem sucedida”. Não é. Ela está muito bem amparada e sabe com quem anda, mas não tem parâmetros à sua frente para seguir. Ou seja, Anitta faz o caminho, pela primeira vez, de uma artista pop brasileira com 60 milhões de seguidores no Instagram (ah, os números da nova ordem…) a entrar com tamanha força no impenetrável setor latino-americano. Isso é bem sério. Nenhum nome do sertanejo ou do pop romântico moderno conseguiu tal proeza com longevidade. O clipe de Envolver foi uma briga sua, não de um empresário ou de uma gravadora. Foi ela quem o dirigiu e apostou, apesar de contar com menor orçamento do que foi dispensado a Boys Don’t Cry, que daria certo depois de chamar a estrelada coreógrafa Aliya Janell Brinson e o modelo marroquino Ayoub. Ficou um arraso.
2. Anitta é “produto da hiperssexualização feminina”. Não é só, e aqui reside uma leitura misteriosa. Seu corpo exposto, flexionado e vigoroso, impositivo justamente por ser imperfeito, não se descola de uma “ideia de Anitta”, uma força que a protege da vulgaridade mais crua e a tira do alvo do feminismo que, talvez por isso, nunca a acusou de “reforçar a objetificação feminina”. Anitta tem um corpo que fala quando dança, decidido e dominador, nunca subserviente. É a mulher que pode fazer ou não fazer se não quiser, algo com o qual os homens do star system, mais uma vez, não estão acostumados.
3. “Anitta não canta bem e sua voz é afinada por processadores de estúdio”. Talvez, mas a má notícia aos detratores pode doer um pouco mais agora: não se faz mais artistas no pop planetário apenas com a voz. E mais: a voz natural no pop planetário não existe. Anitta tem um caminho vocal de crescimento desde o primeiro álbum de 2013, com o Show das Poderosas, até o single da explosão, Envolver, e provavelmente seu próximo álbum Girl From Rio. Mas o que se ouve aqui, a voz saindo de um tubo cheia de efeitos e distorções, não se trata mais de correção, mas de linguagem. E não importa mais se o cantor canta afinado ou não. Este recurso, já foi testado, é capaz de afinar até mesmo o latido de um cão.
A voz de Anitta ganha a parada em outra dimensão. A “ideia Anitta” se fortalece pelos posicionamentos políticos, pelas causas ambientais e pelas conquistas de classe. E assim, essa mulher que não podemos mais ignorar senta-se no sofá ao lado de Jimmy Fallon, canta com Snoopy Dogg, se prepara para uma apresentação no Coachella Festival e se torna a mulher mais ouvida no planeta na principal plataforma de música do mundo. A jornalista Claudia Assef já disse tudo: “Aceita mais que dói menos.” / AE
Foto: Vincent Rosenblatt
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